Cartório no Centro RJ – Tabeliã Fernanda de Freitas Leitão

 

Cartório no Centro RJ – UMA ANÁLISE NOTARIAL DO CONTRATO DE DOAÇÃO

Fernanda de Freitas Leitão*

Após alguns anos de experiência trabalhando em um Ofício de Notas da Capital do Rio de Janeiro, pude constatar que a lavratura de uma escritura pública de doação, normalmente, não nos desperta tanta atenção. Credito essa desatenção ao fato de acharmos, a meu ver, equivocadamente, que se trata de uma escritura que não apresenta um maior grau de dificuldade na sua elaboração.

Ledo engano, pois, em minha opinião, o contrato de doação é um dos mais complexos e que exigem do Notário ou do advogado um absoluto domínio sobre a matéria.

Na maior parte das vezes, o nosso cliente não sabe exatamente o que quer, ele simplesmente nos diz que pretende doar um determinado imóvel a uma pessoa, normalmente, a um filho.

A partir daí, começa o nosso árduo trabalho. Na verdade, o melhor seria fazermos um checklist contendo todas as perguntas, que deverão ser feitas ao cliente, de forma a que tenhamos ciência da sua real intenção.

Passemos, então, ao nosso checklist:
∙ a) a doação será adiantamento da legítima, da parte disponível ou tratar-se-á de partilha em vida?
. b) a doação será com ou sem reserva de usufruto? E, se houver a reserva do usufruto, com ou sem

direito de acrescer, nos termos do art. 1.411, do CC?
. c) a doação será com ou sem cláusula de reversão?
. d) a doação será com ou sem as cláusulas protetivas e a cláusula restritiva? E, se houver a

imposição das cláusulas, serão elas vitalícias ou temporárias?
. e) a doação, se feita ao casal, será com ou sem a cláusula de acrescer, com fundamento no art. 551,

do CC?
Como podemos perceber não se trata, definitivamente, de uma tarefa simples.
Comecemos, pela primeira pergunta, será adiantamento da legítima, será da parte disponível ou será

uma partilha em vida?

DA DOAÇÃO COMO ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA

“Art. 544 – A doação de ascendente a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança.” (g.n)

A hipótese do adiantamento da legítima, se feita de ascendente para descendente ou de cônjuge para outro, é a mais comum. A propósito, se nada mencionarmos na escritura, a doação será considerada adiantamento da legítima.

DA DOAÇÃO DE UM CÔNJUGE A OUTRO (ART. 544 X 2.002, ambos do CC).

A novidade que nos trouxe o Código Civil de 2002 foi a de incluir o cônjuge no rol dos herdeiros necessários (art. 1.845, CC). Logo, se houver doação de um cônjuge ao outro e o contrato for silente, a doação será considerada adiantamento da legítima (art. 544, CC) e deverá, na minha ótica, o bem doado ser trazido à colação em futuro inventário, conquanto o art. 2.002, da nossa lei civil, obrigar, tão somente, os descendentes a conferir o valor das doações.

Entendo que, nesses casos, seria conveniente reforçar no contrato de doação que aquele bem está sendo doado, trata-se de adiantamento da legítima, devendo, portanto, o aludido bem ser trazido à colação em futuro inventário.

Diferentemente do que ocorre na compra e venda, em que é imprescindível a intervenção dos demais descendentes e do cônjuge (art. 496), na doação essa intervenção não é obrigatória, haja vista que a doação dos pais aos filhos e, agora, também, do cônjuge ao outro cônjuge, importa em adiantamento da legítima.

* Bacharel em Direito em 1991 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Exerceu a advocacia na iniciativa privada, em seguida, admitida em concurso público, exerceu o cargo de Procuradora do Estado do Rio de Janeiro e, a partir de 1998, passou a atuar como quinta Tabeliã do 15o Ofício de Notas da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

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Isso quer dizer que, quando o ascendente comum falecer, os bens doados deverão ser trazidos ao inventário e conferidos.

DA DOAÇÃO DO COMPANHEIRO A OUTRO

Agora, como devemos proceder quando a doação for feita de um companheiro ao outro, posto que, o companheiro não foi incluído no rol dos herdeiros necessários, não foi mencionado no art. 544, tampouco no art. 2.002, ambos do Código Civil?

Entendo que, apesar de o companheiro não ostentar a condição de herdeiro necessário, ele fará jus à herança, de acordo com o art. 1.790, da lei civil vigente.

Logo, se um companheiro resolve doar um bem ao outro, a meu ver, deverá o doador especificar se a doação está sendo feita da sua parte disponível ou como adiantamento do quinhão hereditário a que o companheiro faria jus, devendo ou não o aludido bem ser trazido à colação em futuro inventário.

Sendo o contrato de doação um negócio jurídico bilateral, se o donatário concordar que a doação foi efetivada como adiantamento do seu quinhão hereditário e que o bem deverá ser trazido à colação em futuro inventário, embora não conste da lei esse preceito, reputo essa determinação contratual válida, pois também não há na lei nada que a vede.

Ao que tudo indica, a Reforma do Código Civil corrigirá essas distorções do nosso sistema legal, impondo a obrigatoriedade da colação, não só aos descendentes, mas, também, aos cônjuges e aos companheiros, alterando o art. 2.002, do atual Código.

DA DOAÇÃO DO DESCENDENTE AO ASCENDENTE

Agora, imaginemos outra situação, um filho que resolve doar um bem ao seu pai. Essa doação será considerada adiantamento da legítima, visto que o ascendente é, igualmente, herdeiro necessário?

A resposta é não! E por que não? Por falta de previsão legal.

Pela simples leitura do art. 544, verificamos que o citado artigo trata da doação do ascendente ao descendente e de um cônjuge ao outro, deixando de mencionar a doação do descendente ao ascendente.

Vejamos o que diz o renomado autor Zeno Veloso em sua obra “Direito Hereditário do cônjuge e do companheiro”, sobre essa questão:

Não só na brasileira como em muitas legislações estrangeiras, os ascendentes estão dispensados da colação. No direito português, Pires de Lima e Antunes Varela dão a explicação que, universalmente, é utilizada: “Não há, de facto, segundo a ordem natural da vida e das coisas, na doação que o filho excepcionalmente faça ao pai ou a um dos avós, nenhuma razão para presumir que a liberalidade seja feita com a idéia de efectuar um simples adiantamento por conta da quota hereditária que, em regime de igualdade com a mãe ou com os outros avós do doador, será mais tarde devida ao beneficiário. Realmente, se a colação toma por base a presunção de que o doador, nos casos gerais, quer apenas adiantar (antecipar) a herança do herdeiro, e não coloca-lo em situação vantajosa que a dos outros, não é razoávelimaginarqueodescendentequedoaalgoaopaiouàmãetenhaemmente adiantar a herança dos genitores, pois o normal é que os pais morram antes do filho.”

DA DOAÇÃO DA PARTE DISPONÍVEL

Com efeito, a doação poderá ser da parte disponível do doador.

Atente-se que o cálculo do que se refere à parte disponível será feito por ocasião da liberalidade. Mais uma vez, é bom que se esclareça que o Notário não desempenhará o papel de detetive e não terá de comprovar se o que está sendo doado corresponde realmente ou não à parte disponível.

Para isso, basta que o doador declare que a mencionada doação se refere a sua parte disponível e que o bem ora doado não deverá ser trazido à colação em futuro inventário. Essa declaração final é de suma importância, não bastando que se coloque na escritura que a doação é da sua parte disponível.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO. COLAÇÃO. “OS DESCENDENTES QUE CONCORREREM À SUCESSÃO DO ASCENDENTE COMUM SÃO OBRIGADOS, PARA IGUALAR AS LEGÍTIMAS, A CONFERIR O VALOR DAS DOAÇÕES QUE DELE EM VIDA RECEBERAM, SOB PENA DE SONEGAÇÃO.” (ART. 2002, caput, NCC).DECISÃO QUE DETERMINA A INDISPONIBILIDADE DE BENS IMÓVEIS ADJUDICADOS AO SUCESSOR DO DONATÁRIO E SUA COLAÇÃO AO INVENTÁRIO DA DOADORA, QUE POSSUÍA OUTROS DOIS FILHOS E FEZ A

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DOAÇÃO DE BENS A UM DOS HERDEIROS, EM VIDA. ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA. I -TANTO PELO ART. 1789 DO CC DE 1916 QUANTO PELO ART. 2006 DO CC EM VIGOR, PARA QUE PRODUZA EFEITO JURÍDICO,A DISPENSA DA COLAÇÃO DEVE SER DECLARADA PELO DOADOR, EM CLÁUSULA EXPRESSA, OU NO PRÓPRIO TÍTULO DE LIBERALIDADE OU NO

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TESTAMENTO. NÃO HAVENDO ESSA DISPENSA, OBRIGA-SE O DONATÁRIO, OU, QUANDO

FALECIDO ANTES DO DOADOR, SEUS SUCESSORES, A TRAZER OS BENS À

COLAÇÃO.NECESSIDADE DE APURAÇÃO SE O MONTANTE DOADO EXCEDEU A PARTE DISPONÍVEL DO PATRIMÔNIO DO FALECIDO. II-INDISPONIBILIDADE DOS BENS DOADOS. MEDIDA NECESSÁRIA, P ARA IMPEDIR A TRANSFERÊNCIA A TERCEIROS, PROTEGENDO O PATRIMÔNIO DOS DEMAIS HERDEIROS, ATÉ O DESLINDE DA LIDE. RECURSO DESPROVIDO. (g.n) (Agravo de Instrumento no 0020943-87.2010.8.19.0000, 17a CC/TJRJ, Des. Rel. Luisa Bottrel Souza, j. 25.08.2010).1

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Vale, ainda, registrar que a dispensa da colação poderá ser outorgada de duas formas: na própria escritura de doação ou no testamento, ex vi do art. 2.006, do Código Civil.

DO MOMENTO DA PROPROSITURA DA AÇÃO PARA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA PARTE INOFICIOSA

Insta consignar, para que possamos saber se o doador doou mais do que poderia, considerando a existência de herdeiros necessários e a limitação da possibilidade de dispor de 50% (cinquenta por cento) dos seus bens, que a análise da parte excedente, igualmente denominada inoficiosa, deverá ser feita no momento da liberalidade.

Por doação inoficiosa entende-se aquela em que o doador, no momento da liberalidade, excede a legítima dos herdeiros. Não se lhe concede que doe, além do que poderia dispor em testamento, mas a nulidade não atingirá todo o contrato, senão apenas a parte excedente (vide art. 549, 1.789, 1.846, 1.967 e §3o, do art. 2.007, todos do Código Civil).

Agora, só por curiosidade, por que as doações se chamam inoficiosas?

“Porque contrariam o ofício do doador. O pai que doa excessivamente a um dos filhos ou a um estranho, peca contra o estado de pai, o dever, o ofício.”2
Por outro lado, existe, ainda, a indagação doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de demandar a nulidade da doação inoficiosa antes da morte do doador. Há entendimentos para ambos os lados, uns entendem que a ação somente poderá ser proposta depois da morte do doador, outros entendem que a pretendida ação poderá ser intentada durante a vida do aludido doador.

De qualquer sorte, esse dilema será, certamente, solucionado pelo Projeto de Lei 6.960, que esclarece e altera o princípio segundo o qual “(…) os herdeiros necessários só poderão arguir a nulidade após a morte do doador, pois, antes da morte, não estão investidos de qualquer direito”.

Pois, de acordo com o mencionado Projeto de Lei, o artigo 549, do Código Civil, passaria a ter a seguinte redação:

“Art.549……………………………………

Parágrafo único – A ação de nulidade pode ser intentada mesmo em vida do doador.” (NR)

Por enquanto, existe julgado do E. Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a ação de nulidade da doação inoficiosa poderá ser proposta mesmo em vida do doador, senão vejamos sua ementa:

“CIVIL. DOAÇÃO INOFICIOSA. A AÇÃO ANULATÓRIA COM BASE NO ART. 1.176 DO CPC PODE SER INTENTADA MESMO EM VIDA DO DOADOR. RECURSO NÃO CONHECIDO.”
(REsp 7879 / SP /RECURSO ESPECIAL 1991/0001754-0, Des. Rel. Paulo Costa Leite, 3a Turma do STJ, j. 24.02.1994)

1 No mesmo sentido os acórdãos da Apelação no 0082968-85.2000.8.19.0001, 14a CC/TJRJ, Des. Rel. Nascimento Povoas Vaz, j. 15.12.2010 e do Resp 730483/MG, Recurso Especial 2005/0036318-3, Ministra Nancy Andrighi, T3 – Terceira Turma do STJ, Julgamento: 03/05/2005, Data da publicação: DJ 20/06/2005 p. 287, RBDF vol. 31 p.67.
2 ALVIM, Agostinho. Da doação, São Paulo: Saraiva.

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No mesmo sentido, os acórdãos prolatados pelos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, cuja ementa é transcrita a seguir:

DOAÇÃO INOFICIOSA. AÇÃO DECLARATÓRIA. DOADOR VIVO. POSSIBILIDADE. FALECIMENTO DA PARTE. SUBSTITUIÇÃO PROCESSUAL. NECESSIDADE. JULGAMENTO ULTRA PETITA. OUTROS IMÓVEIS. PROVA. ÔNUS. VALOR DOS BENS. VOTOS VENCIDOS.
(Apelação no 393.452-9 – UBERABA, TJMG, j. 11.05.2004).3

DA DOAÇÃO PARTILHA EM VIDA

“Art. 2.018 – É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros
necessários.”

Trata-se de partilha em vida, que poderá ser levada a efeito de duas formas: por meio de doações ou por meio do testamento.

A partilha por ato inter vivos abarcará parcial ou totalmente os bens do ascendente. Cabe, no entanto, a observação de que, se o ascendente decidir dispor de todos os seus bens em vida, deverá reservar parte deles, ou destinar uma renda suficiente para a sua subsistência, de forma a não contrariar o preceito contido no art. 548, da lei substantiva.

Vale, ainda, assinalar que a decisão de se partilhar todos os bens em vida é extremamente utilizada entre nós, pois os ascendentes, procurando evitar as previsíveis e indesejáveis brigas familiares ou mesmo proteger os herdeiros do alto custo de um inventário, decidem, em vida, partilhar os bens entre os filhos. E, para isso, celebram doações, na maior parte das vezes já atribuindo a cada filho um determinado imóvel.

Para conferir maior garantia a essa partilha em vida, bem como procurando evitar que a mesma não seja questionada no futuro, os ascendentes requerem a intervenção dos demais filhos e dos seus respectivos cônjuges ou companheiros, em cada ato praticado, apesar de essa intervenção ser despicienda.

Com todos esses cuidados, os pais entendem que a questão sucessória estará resolvida e que não haverá discussão, presente ou futura, sobre esse tema.

Infelizmente, eles estão enganados, visto que poderá sim haver discussão sobre a partilha, apesar de todos os filhos terem participado do ato, declarando a sua ciência e concordância.

Passamos, nesse momento, a transcrever o Recurso Extraordinário no 94.512-1, Primeira Turma, São Paulo, STF:

“Recurso extraordinário. Reexame de prova. Inventário. Partilha em vida. Doação. Colação. ….omissis….
Anotam, outrossim, que a agravada, por ato formal, renunciou à possibilidade de, no futuro, investir

contra o aludido ato de liberalidade, o que também induz dispensa da colação. …………………

A partilha em vida, portanto, equipara-se a uma doação, estando subordinada, nesses termos, às mesmas regras jurídicas que regulam este último instituto citado. Já por aí se vê que não está dispensada a colação, tal como pretendem os agravantes.

……………………

pouco importando, neste caso, que o filho prejudicado tenha aceitado a partilha feita pelo pai, quando foi da respectiva escritura, porque o Código Civil exige, expressamente, no art. 1.776, que a partilha, para ser válida, não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.”

Resumindo, nesse caso, foi celebrada a partilha em vida, todos à época concordaram com a referida partilha; posteriormente, uma filha que se sentiu prejudicada, após a morte do pai, exige que todos os bens venham à colação, pois a sua legítima fora prejudicada e não havia na escritura declaração de que o bem doado não deveria ser trazido à colação em futuro inventário.

3 Veja também os acórdãos da Apelação no 9215833-14.2006.8.26.0000, 1a Câmara de Direito Privado TJSP, Des. Rel. Rui Cascaldi, j. 09.08.2011, bem como da Apelação APC 20120110638855 DF 0017774- 54.2012.8.07.0001, 2a CC/TJDF, Des, Rel, Waldir Leôncio Lopes Junior, j. 27.11.2013).

 

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